sexta-feira, 4 de junho de 2010

CORAÇÃO VARZEANO

“Domingo tem arranca toco! Nóis contra os pé-de-arfanje do Quilombo.”

Há algumas décadas, talvez fosse esse o convite que – no altifalante de uma paróquia da Paulista ou Paulicéia – o próprio vigário fizesse à comunidade do bairro. E o povaréu vibraria de entusiasmo, pois haveria jogo de futebol entre, por exemplo, MAF ou Jaraguá, contra os pernas-de-pau da Usina São Francisco do Quilombo. E era isso um “arranca-toco”: o jogo em terrenos descampados transformados em templos do futebol, com capim nas beiradas, tocos de arbustos que sobravam das capinas de matagais. Os “pés de arfanje” eram jogadores tão ruins e desastrados que, em vez da bola, chutavam os restos de capim como se fossem alfanjes roçando o chão.
O convite do vigário, a reunião dos jogadores e dirigentes dos times, a soberba do dono da bola, as camisas encardidas, rotas, doadas por algum benemérito faziam a festa domingueira de um povo que conseguia enxergar e sentir e viver o sagrado da vida junto ao profano do cotidiano. Na várzea, acontecia a sacralidade de um tempo que, na realidade, apenas repetia e reproduzia a imemorial vocação do homem para o jogo, para o lúdico, para a convivência ao mesmo tempo harmoniosa e conflitante. Na várzea, o “homo ludens” se revelava por inteiro, repetindo – em outro contexto histórico – jogos, danças, disputas que acompanham a humanidade deste os primórdios. Pois, na várzea – onde se brincava e se organizava e se compunha o esporte bretão – comungavam tempo e espaço sagrados, nos quais comunidades inteiras exercitavam a arte de viver convivendo.
O futebol de várzea nasce disso, dessa vocação humana para o lúdico e a confusa – mas admirável – simbiose entre o sagrado e o profano. Terrenos aparentemente baldios, como que sem donos, iam-se tornando espaços lúdicos onde crianças e adolescentes, ao lado de marmanjos, divertiam-se com uma bola. Roçava-se o campo, faziam-se traves pedaços de ripas de madeira, com varas de bambus ou troncos finos e galhos grossos de árvores. Então, tirava-se a sorte para dividir os protagonistas em dois times – garantindo-se vaga permanente ao dono da bola – e lá estava, pronto e acabado, o campinho de futebol, o campo de várzea.
A Piracicaba de que me lembro – e são lembranças que me ficam desde os 1940 – era, como a escola do poema, “risonha e franca”. Mais ainda: nela, “a praça era do povo como o céu é do condor”. Sabia-se, com generosidade, que as ruas pertenciam aos garotos e , portanto, que moleques e meninos de rua eram felizes em seus lugares de convivência, na sacralidade dos espaços públicos. A várzea – pela quase ausência de clubes, de instituições sociais – era o lugar onde o profano se transformava na convivência confiável, terreno fértil para o plantio de sementes de amizade, de companheirismo, de solidariedade. E a disputa do futebol – quase sempre rude, competitiva, feita de paixões – se tornava, ao final da grande luta, um momento de comunhão. Na várzea, celebrava-se a missa da fraternidade, a confraternização entre vencidos e vencedores.
Foi desses encontros informais, muitas vezes casuais, que se formaram agremiações, entidades, clubes, dando origem a certames varzeanos de futebol, transformados, logo depois, em campeonatos de futebol amador. Eram tantos e tantos que seria impossível, à memória do já veterano escrevinhador, lembrar-se de todos. Havia times até com nome de pequenas empresas, que se antecipavam ao que, agora, se chama marketing futebolístico. Elas apoiavam grupos de jovens, doando as camisas mas com a condição de se inscrever, nelas, os nomes delas. Jornais noticiavam que o time da Gengibirra Boa Pra Arrotá iria jogar contra a Cotubaína Da Ponta da Orelha, nomes fictícios para exemplificar.
Mesmo cometendo a injustiça de não citar tantos e tantos, é preciso confirmar serem inesquecíveis o Jaraguá, o MAF, o União Monte Alegre (UMA), União Porto, Estrela d´Alva, Atlético Piracicabano, Palmeirinha, o timinho infantil do Boca Juniors, os “cordígeros” dos frades capuchinhos. E, ao longo dos anos, o surgimento dos times do Oratório Domingos Sávio, do Colégio Dom Bosco, as disputas intercolegiais, as grandes batalhas de torcidas, as comemorações monumentais diante do campeão da várzea, o campeão do futebol amador. A cidade se engalanava, havia carreatas por ruas e avenidas, espocavam rojões, emoções transbordavam, todas elas.
Quando se fala Piracicaba ter sido celeiro de craques, estamos, até mesmo inconscientemente, dizendo do futebol varzeano. Ali, onde está o Teatro Municipal e à beira do riacho Itapeva, ficava um campinho de várzea. No Bairro Alto, o Palmeirinha nasceu de um terreno baldio e, em Vila Rezende, o dr.Kock cedeu um espaço para os funcionários jogarem futebol, origem do Clube Atlético Piracicabano. No Saibreiro – pois era Saibreiro, onde está o vigoroso Jardim Elite – havia campinho de várzea. E no Piracicamirim. E na ESALQ, cujo campo tornou-se como que a pia batismal do futebol profissional de Piracicaba, um profissionalismo aparente, pois todo feito de coração. Na Paulista, no Jaraguá, em Vila Cristina, no bairro Nhô Quim, em Santa Terezinha, em Tupi, no Paredão Vermelho, no Pau Queimado e em Pau d´Alho e no Pau d´Alhinho – enfim, onde existisse vida social, havia um espaço sagrado do espírito lúdico da comunidade: o campo de várzea, templo do esporte bretão.
Ainda hoje – não me lamento em dizê-lo – quando passo pela rua Regente Feijó e vejo o magnífico supermercado, confrange-me o coração e sinto como que um impulso religioso, o de fazer uma oração ou de baixar a cabeça em reverência. Pois, naquele lugar, houve um primeiro campo de várzea que se transformou, devagarinho, no humilde mas heróico “Campo do XV, a “panela de pressão”, o Estádio da Rua Regente, em cujo gramado correram o sangue, o suor e as lágrimas de verdadeiros deuses do futebol. Ali reinaram Gatão, Elias, Idiarte, De Sordi, Chicão, Pedro Cardoso, Rabeda, Strauss, Adolfinho e outros, ícones de um tempo, nascidos na e da várzea. O mesmo aconteceu com outros ídolos do futebol: o Cuíca do Atlético, que se tornou Mazzola do Palmeiras e Altafini diante do mundo; Coutinho, jóia rara do Palmeirinha, eternamente Coutinho, parceiro insubstituível de Pelé.
Retomo o princípio: territórios de lazer, de entretenimento, de esportes, de convivência são, na realidade, espaços sagrados da comunidade, onde se exercitam a convivência, o respeito mútuo, o aprendizado democrático entre o vencer e o perder, nos quais se criam e se perenizam amizades, uma escola também de compaixão. E não podemos nos enganar diante da urbanização desregrada que parece ter expulsado a várzea das cidades. Não é toda a verdade. Pois a várzea, acima de tudo, simboliza um estado de espírito, a relação confraternizadora, a disputa amigável onde o guerreiro, ao final da peleja, estende a mão ao adversário e vai beber do mesmo copo de cerveja. Na fronte de cada jogador, há um espaço vazio à espera da sua coroa de louros.
Fôssemos um pouco mais sábios, acreditaríamos no eterno retorno. Que não significa regresso e nem pode ser confundido com retrocesso, mas, sim, o eterno retorno do homem a seus princípios e a seus valores, mesmo quando o sinais dos tempos dizem o contrário. O ser humano ama o jogo, é amante do lúdico e, portanto, um amador por natureza. Como território sagrado do esporte bretão, a várzea sobrevive na alma das pessoas como um espaço vital de comunhão. Não será mais em descampados ou em roçados, em arranca-tocos ou com pés-de-arfanje. Mas continuará em clubes, escolas, em instituições, em espaços recreativos e lugares públicos que, um dia, prefeituras haverão de reinventar.
Basta ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. Pois já nos chegaram os primeiros chamamentos e a convocação para o início deste retorno eterno, agora quando o Brasil prepara-se para abrigar os Jogos Olímpicos. Olímpiadas nos transformam, a cada um de nós, em pessoas olímpicas, compulsoriamente olímpicas. E isso, na realidade, apenas quer dizer que o brasileiro retoma o seu coração varzeano.

Cecílio Elias Netto

DOS CAMPOS VARZEANOS À GLÓRIA MUNDIAL

Os garotos corriam e brigavam por uma bola. De borracha, capotão, bexiga de boi ou de meia. Esta mais fácil de produzir, porque contava com a ajuda da mãe de cada um. A qualidade dos campos pouco interessava. Fossem cobertos de grama ou de terra batida; de contornos indefinidos; lisos como uma mesa de bilhar ou cheios de buracos; tivessem traves ou marcados com qualquer peça que identificassem suas medidas. Sempre havia algumas rusgas na marcação de um pênalti ou gol por parte de árbitro improvisado. Eram as peladas, mas o começo para os meninos que olhavam o futuro cheio de esperança como craques de futebol.
Nessas porfias de alegres manhãs de céu cor de anil, nas tardes ensolaradas ou cobertas com nuvens que prometiam pancadas de chuva pouco importava aos meninos. Nunca faltavam as torcidas. Pequenas, mas que despertavam rivalidade.
Com o tempo passando, campos improvisados se tornavam pequenos demais. Era preciso procurar centros mais avançados para o desenvolvimento de qualidades, ainda que fossem apenas com orientadores de conhecimentos práticos. As possibilidades surgiam nos gramados varzeanos, sem alambrados e arquibancadas, mas já acompanhados de espectadores que vibravam com lances de efeito e gols que provocavam aplausos pela bela feitura. Era a escola para a definição do futuro dos garotos candidatos a subir degraus de uma escada maior no futebol.
Esse era um tempo que Piracicaba tinha espalhados por todos os cantos campos de futebol, quando surgiram clubes que disputavam competições amadoras oficiais ou de puro entretenimento, até, como se propalava, equipes de esquina para disputa de churrascadas nos finais das tardes. Mas já era um tempo em que a promessa do aparecimento de um craque tinha configuração na realidade. É bem verdade que muitos desses clubes desapareceram na aceleração de circunstâncias econômicas inevitáveis.
A profissionalização do futebol do interior alavancou a possibilidade de Piracicaba se destacar como centro de revelação de craques, que se dispersaram por inúmeras cidades do interior e da própria Capital, alcançando destaques em clubes de projeção nacional e internacional. É por isso que o futebol de Piracicaba está marcado por todos os tempos na consagração de três nomes que alcançaram o ponto máximo que todos craques almejam, vestindo o uniforme da seleção brasileira. É certo que nenhuma outra cidade do interior paulista possa se vangloriar desse feito notável.
Os craques De Sordi, Mazola e Coutinho saíram dos campos varzeanos de Piracicaba para a glória mundial.

Ludovico da Silva
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